Abandonei um livro.
Estou desde agosto com A invenção da solidão nas mãos e sei que este livro já apareceu por aqui. Corro o risco de me repetir, mas mesmo assim conto. A primeira parte, “retrato de um homem invisível” me comoveu. É Auster, escrevendo o retrato de seu pai, um homem de pouca ou quase nenhuma intensidade, senão a intensidade em que se fez ausente.
A segunda parte “O livro da memória” tinha tudo para ser das minhas preferidas. Esse tema da memória me fascina, sou nostálgica com gosto e me encanto com os detalhes fixados nos cantos da mente dos outros. Quando escrevem sobre a cor de um azulejo, sobre a casa, sobre a mesa, o gosto da água: tudo isso me encanta. Por isso insisti.
Não sei se foi a hora. Na primeira tentativa de leitura, eu estava ansiosa para terminar porque outros livros da lista urgiam. Daí parei, porque não acredito que boas leituras se fazem na ansiedade pelo fim. Guardei.
Na segunda tentativa, levei o livro na mala para um encontro com o meu pai e esses dois assuntos, memória e meu pai, quando se encontram não me deixam ilesa.
Ao menos, um prêmio: quase sempre que fico longe da escrita, é por causa do trabalho.
E com frequência, o que me traz de volta é algum episódio paterno.
Seja por sua ansiedade inquietante, pelo seu jeito ríspido de falar com qualquer pessoa, pelo seu senso aristocrático de superioridade ou pela cara de pau: meu pai é um personagem perfeito.
E sendo ele cheio de ambiguidades deliciosas para a ficção, mas meio-amargas para a realidade, a sensibilidade entrelinhas parece me escapar. Tento ler, mas a mente se ocupa de tentar permanecer no controle das emoções e liga o alerta de assuntos espinhosos: melhor não cutucar a onça com vara curta. Neste estado, difícil suspirar sobre memórias.
Tenho pensado no “boom” dos livros autobiográficos. Na febre Édouard Louis, Annie Ernaux. Na minha febre pelo Carrère. Todos franceses, por acaso (ou não, Proust parece ter feito carreira nesta linha).
Gosto quando encontro uma intimidade insólita entre o que leio e vivi. Quando encontro na vida alheia uma confissão tão honesta, que descortina aquilo de mim que não é bonito dizer em voz alta. A parte que vai visitar o pai contando as horas para voltar pra casa, a parte que finge que não vê o chão imundo e segue a vida e a que fala demais quando bebe e tem bebido mais do que o considerado adequado. O Carrére escreveu em Ioga: a literatura é o lugar em que não se mente.
Estou escrevendo ficção. Joana, minha personagem imperfeita, com seu mapa astral recém refeito. Sagitariana com ascendente em Leão. Será? Cabe rever. Volto ao livro e o abandono com frequência. Escrevo sua lixeira, descrevo seu casaco, leio o que pode trazer ideias. Mas num fluxo contínuo, o assunto que as páginas mais têm me pedido tempo são íntimos.
Talvez por isso tenha me seduzido tanto a ideia de um diário de leituras. Algo além da resenha e da crítica. Algo totalmente meu, que deveria ficar guardado no caderno e só, mas topei deixar que saia.
Li outro dia alguma crítica a esse movimento todo de autobiografias, algo sobre termos perdido a capacidade de inventar e estarmos atravessando uma era do ensimesmamento literário. Em alguma medida pode ser e me perdoem, porque penso já ter escrito sobre isso também. Em outra, essa força corajosa que é o deixar de conter para permitir vazar em páginas… muito me interessa.
Sempre fui do conter.
Contenho até hoje a revelação para o meu pai de que tenho uma tatuagem grande no braço esquerdo. Ele só sabe de uma, nas costas, porque foi impossível tampá-la na viagem que fizemos a praia e a do braço não existia naquela ocasião.
Há dois anos o visito em São Paulo de mangas compridas e em que pese o calor que fez ontem, preferi trabalhar suando e desconfortável do que deixar que ele se deparasse com a versão frustrante de uma filha que não é espelho.
Contenho dele o fato de que não moro mais com a minha mãe. Isso já faz dois anos - mesmo tempo da tatuagem no braço. Guardada a sete mentiras e um bloqueio no Instagram, minha casa de Araxá peermanece incólume da consciência do meu pai e o apartamento da Tijuca sequer guardou suspeita.
Contenho que tenho um clube de leituras, porque leio o que ele jamais permitiria habitar sua biblioteca. Também contenho o que escrevo, porque não o interessaria saber a verdade. Contenho a raiva, mas menos do que antes. A língua ferina tem me pedido passagem e confesso ter deixado que ela fale, sem sentir um pingo de remorso.
Ontem eu contive um abraço e disse que o tempo máximo que podemos ficar juntos é três dias. Mais do que isso azeda a contenção. Ele me perguntou quanto me devia, eu disse: só material ou incluo os danos morais? E ri, quando ele se fez de vítima pela milésimaperdiacontavez.
Me gabo pela capacidade de fazê-lo sofrer um pouco. Eis uma parte não tão bonita de mim. A parte políticamente correta e em análise simplesmente abriria as comportas. A educada no catolicismo jamais escreveria uma linha assim. Em tudo: honrar pai e mãe. Essa briga interna, esse duplo. Tema de obsessão.
Escrevo hoje enquanto ouço o tema de La La Land no piano. Me permito mudar o tom do texto, como na música.
Meu pai me contou dessa vez que voltou a tomar aulas e está pensando em comprar um teclado. É automático: penso no piano que ele me deu e foi palco de algumas parcas aproximações entre nós. Eu pequena, sentada à esquerda do banquinho. Ele com as mãos gigantes, acompanhando ao lado direito. Eu e ele tocando Blue Moon, em alguma solidão inventada.
O piano foi vendido para minha irmã mais velha numa época que prefiro não lembrar ou escrever. Quase sempre que o vejo penso que jamais teria deixado aquela marca de copo na madeira ou fechado a tampa sem o paninho protegendo as teclas. Algo entre a memória do zelo com o presente tão querido e a realidade me tira um pouco o ar, mas contenho.
Sempre fui do conter.
Eu deveria deixar este texto descansar antes de apertar “envie a todos agora”.
Mas deixo vazar.
Um aviso
No próximo mês começo a série Meus Livros e Meus Dias, um diário de leituras compartilhado por aqui.
O primeiro livro que lerei será A invenção de Morel, que você pode ler junto se quiser e, quiçá, compartilhar de impressões. Percebo agora a coincidência: na news de hoje falei de outro título contendo a palavra invenção. Boa palavra para inventar de escrever.
Alerto: serão textos íntimos, lotados de nostalgias talvez tão piegas quanto as desse texto de hoje.
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